terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ocupação não garante controle sobre facções nem sobre as milícias














O trabalho mal começou


Ocupação não garante controle sobre facções nem sobre as milícias.


Entrevista com Gláucio Ary Dillon Soares

A ocupação do Complexo do Alemão, conjunto de favelas tomado na manhã de ontem, praticamente sem resistência, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro com apoio das Forças Armadas, ainda não representa o controle sobre o crime organizado na cidade.

Por uma questão tática - diminuir a possibilidade de uma articulação das facções criminosas entre si e com os milicianos - os ataques foram direcionados a áreas controladas apenas pelo Comando Vermelho.P Para o sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares, a segunda etapa do combate, contra outras facções e milícias, exigirá estratégias que ultrapassem a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Dillon Soares sugere a adoção no Brasil de mecanismos semelhantes aos utilizados pelo governo de Álvaro Uribe (2002-2010) na Colômbia para a desmobilização de grupos criminosos. Naquele país, o governo ofereceu o perdão para crimes cometidos e até uma bolsa equivalente a US$ 180 para garantir a reinserção dos criminosos no convívio social.

Em três anos, Uribe conseguiu que 13 mil pessoas entregassem as armas, majoritariamente integrantes de grupos paramilitares, que cobravam proteção para perseguir narcotraficantes e militantes de movimentos sociais. Mas, na sexta-feira passada, a Justiça colombiana tornou sem efeito os benefícios concedidos aos desmobilizados.

No caso do Rio, Dillon Soares enxerga mais possibilidades de se tentar um acordo do gênero com os integrantes das milícias, que expulsaram facções criminosas de favelas e passaram a extorquir moradores. Para o sociólogo, a vinculação dos milicianos com o aparelho institucional do Estado pode fazer com que seus integrantes tenham percepção de que não teriam como enfrentar uma ofensiva das forças de segurança.

Aos 76 anos, e com um currículo no sistema Lattes de 49 páginas, Dillon Soares é carioca do bairro das Laranjeiras e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Há 35 anos seu objeto de estudo é a criminalidade urbana. Desde janeiro de 2007, o sociólogo integra a organização não governamental "Rio de Paz", que, na sexta-feira, fez um apelo para que o poder público fizesse uma proposta formal de rendição aos criminosos, que estavam cercados no Complexo do Alemão. A "Rio de Paz" foi formada logo após a interceptação de um ônibus interestadual por criminosos, que atearam fogo ao veículo e mataram sete passageiros.

Eis a entrevista.

No início da atual onda de violência no Rio, no dia 21, houve avaliações de que os episódios estavam sendo superdimensionados pela mídia e os indícios de que se tratava de um movimento organizado eram frágeis. Qual o balanço que o sr. faz dos conflitos até agora?

Entre 2000 e 2009, houve mais de 800 ônibus danificados no Rio de Janeiro, com as ocorrências sempre ligadas a prisões, remoções e mortes de traficantes. O que chama a atenção agora é a dispersão geográfica dos eventos em uma concentração menor de tempo , o que indica, sim, coordenação. Mas trata-se da coordenação de grupos fragilmente organizados. É um erro pensar nas facções como empresas com linhas hierárquicas organizadas. Elas se conectam fragilmente. Vem uma ordem e cada um age do jeito que pode. O traço que as une é que parece haver uma preocupação, por parte dos bandidos, em destruir patrimônio, mas evitar perdas de vidas.

Em 2005, com um ônibus urbano, e em 2006, com um ônibus interestadual, houve intenção deliberada de matar os passageiros quando os veículos foram incendiados. Morreram 12 pessoas.

Foram ações pontuais, que tiveram como consequência a execução sumária de seus autores, por parte das facções criminosas. A mídia não superdimensiona ao retratar as ações como uma ofensiva organizada, o exagero está ao se avaliar a força destas facções.

É equivocado aproximar o caso carioca do existente no México ou na Itália?

Basta observar a grande diferença da intensidade da violência nas ações e a extensão temporal dos episódios. É um exagero comparar as facções daqui com os cartéis do México e com a Máfia e a Camorra na Itália.

O sr. não considera a hipótese de que a entrada das Forças Armadas em cena e a disposição das autoridades governamentais em não aceitar acordos tácitos leve a uma perenização do conflito nesse nível de intensidade?

O ponto decisivo será o resultado da operação que se desenrola no Complexo do Alemão [a entrevista ocorreu no momento em que as forças de segurança começavam a cercar a área ]. A invasão da quinta-feira na Vila Cruzeiro mostrou que as facções criminosas sentiram o golpe e estão inferiorizadas em poder de fogo. A aposta maior é que o conflito arrefeça, com alto índice de prisões e baixas entre os criminosos.

O retrospecto do uso de força bélica em conflitos urbanos é muito ruim, inclusive internacionalmente...

É péssimo, desde que não se tenha uma determinação "churchilliana" do governo para resolver a situação. Na Somália, durante o governo Clinton, os EUA foram humilhados por milícias, com a derrubada de um helicóptero Black Hawk, mas não havia determinação em se vencer aquela situação. A determinação é o grande diferencial que existe no governo de agora.

Há indícios de que o Comando Vermelho e os Amigos dos Amigos, as mais importantes facções, estão atuando em conjunto na onda de ataques. Isso não elevou o conflito a outro nível de gravidade?

Sou extremamente cético em relação a essa aproximação. Precisaria de evidências irrefutáveis. Por um motivo básico: as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) reduziram os índices de criminalidade nas favelas que ocuparam, exatamente por bloquearem as invasões de um bando na área do outro. Por irônico que seja, as UPPs salvaram vidas de bandidos também. O que importa ressaltar é que essas facções literalmente se matavam até muito pouco tempo atrás. E as UPPs até o momento entraram na área de uma das facções, não as atingiram de modo uniforme. Elas foram instaladas na área de apenas uma das principais facções [O entrevistado evita citar o nome das facções. As áreas onde as UPPs foram instaladas até este ano são conhecidas pela atuação do Comando Vermelho]. As outras facções e as milícias foram deixadas para um segundo momento, talvez.

O combate às milícias não tende a ser muito mais duro, dado que elas têm um enraizamento no aparelho institucional do Estado que o narcotráfico jamais teve?

Quando o foco for a milícia, teremos uma situação de grande ocorrência de dupla militância. Haverá a necessidade de separar a milícia da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Não será fácil. Mas o poder de fogo deles, feita a separação, é menor do que o das atuais facções criminosas.

O conflito atual não coloca em xeque a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como eixo central da estratégia de segurança do governo do Rio?

As UPPs fazem a ocupação com certo grau social de áreas antes controladas pelo tráfico. Elas claramente se inspiram nas iniciativas adotadas na Colômbia, sobretudo em Medellín, cidade com muitas semelhanças com o Rio. Mas há outra vertente da estratégia colombiana que seria importante refletir sobre sua adoção aqui. É o que chamo de uma proposta de rendição: os soldados do tráfico, os integrantes das facções, se integrariam na sociedade, com o esquecimento dos crimes passados, em troca do abandono das armas. Na Colômbia, funcionou relativamente bem. O grande obstáculo é que, no Brasil, a segurança pública é jurisdição estadual, que não tem poder sobre a legislação penal.

Se a organização das facções criminosas é frágil, quem seriam os eventuais interlocutores de um acordo de rendição?

Encontrar os comandantes é fácil, porque a maioria deles já está presa. Mas acredito na eficácia de uma interlocução por meio de intermediários, sobretudo das igrejas. Não só a Igreja Católica, mas muitas evangélicas.

Do ponto de vista da opinião pública, este acordo não teria dificuldades de ser concretizado?

O cenário da opinião pública tornou-se muito adverso para as facções criminosas. Eles aproximaram, com esses ataques, a polícia da população, que se viu definitivamente na condição de vítima. É previsível supor que certos temas voltarão com força ao debate, como o fim da maioridade penal aos 18 anos. Ela só existe em seis países. É cada vez mais difícil sustentá-la como uma medida civilizatória. A linha dura contra a bandidagem vai ganhar muito terreno. O grupo "foucaultiano" de intelectuais que desconfia das instituições, e que se alinhou com o que se convenciona chamar de "política de direitos humanos", sai disso tudo muito enfraquecido. Temos um grande problema para decidir pela frente, que é o que fazer com o usuário de drogas. As opções estão ganhando uma definição nítida: ou libera-se , ou criminaliza-se o usuário. Mas o fumador de crack das ruas e os que fumam maconha nas redações, nas universidades, nas repartições públicas precisam receber o mesmo tratamento. É uma questão que terá que ser enfrentada.

Fonte: Valor Econômico

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